segunda-feira, 1 de agosto de 2011


Entrevista com Julio Cabello
signatário da "Carta dos 100"

O Centro de Memória (CDM) recebeu o veterano comunista Julio Cabello. A conversa tratou de um período de sua militância que vai da redemocratização de 1945 até o início da ditadura militar.
Julio Cabello nasceu na Argentina, “você sabe onde o Che Guevara nasceu? Foi lá que eu nasci também”, em 1932. E com um ano e meio veio para o Brasil. A família se instalou no interior de São Paulo. Aos 13 anos foi para a capital paulista. “Nós chegamos num domingo e fomos ver o jogo União da Vila Formosa e Rádio do Belém. Depois do jogo, na frente do campo, o meu irmão, que já era do Partido, me levou para um comício do Partido, onde o Prestes falou também; no (bairro do) Belém, era 25 de outubro de 1945.”

“Ali eu comecei no Partido vendendo medalhas do Prestes, Lênin e Marx para arrecadar fundos para o Partido. Nesse mesmo dia eu fui apresentado ao ‘seu’ Machado, que era o tesoureiro do Partido. E o meu irmão era o primeiro-secretário do Partido na região”. O bairro operário da zona leste paulistana era muito fértil para o PC do Brasil. Os comunistas sempre tiveram grande atuação e prestígio ali.

Com o fim da 2ª Guerra Mundial e do Estado Novo, os comunistas no mundo e no Brasil puderam sair da clandestinidade e desenvolver suas atividades abertamente. Elegeram para a Assembléia Nacional Constituinte 14 deputados federais e o senador mais votado.

“O pessoal do Partido sempre me chamava. Comecei a ir nas reuniões da UJC [União da Juventude Comunista] na casa do Soarante. A esposa do Soarante, a Geralda, foi a primeira candidata nossa a vereadora de Guarulhos, pelo partido socialista nos anos 50.”

O presidente Dutra, de péssima memória para o povo brasileiro, seguiu a lógica da guerra fria e colocou o Partido Comunista na ilegalidade. Perseguiu, enjaulou e torturou centenas, tendo matado 55 comunistas durante o seu governo. Com a atuação restrita, as fileiras comunistas diminuíram consideravelmente, assim como a sua abrangência política.

Um futebolista vermelho, sem continuísmo

“O pessoal do Partido não gostava muito, mas eu mexia com futebol.” Julio organizava campeonatos para times de várzea na região. Com 18 anos foi recrutado para as atividades partidárias. “Quando eu achava que o cara [jogador] era bom, eu trocava uma idéia sobre sindicato. Aí eu chegava no pessoal do Partido e dizia ‘aquele ali é bom’ e o pessoal ia lá conversar com ele.”

Por questão de segurança, Julio nem sempre dizia que era comunista. Deixava para outros camaradas a conversa mais partidária. “O cara entrava para o Partido, mas não sabia que eu é que tinha encaminhado ele. Assim foi com muitos.”

Nos anos 1940 e 1950 os comunistas tinham um contingente muito pequeno para seus desafios. Os cargos de direção intermediária eram ocupados conforme as parcas possibilidades. Às vezes o mesmo dirigente ocupava por bastante tempo o cargo. Julio achava que precisava haver oxigenação: “Eu nunca gostei do continuísmo. Eu aceitava ocupar o cargo, mas logo depois tinha que ter outro no meu lugar e eu ia para outro cargo.”

“A vida me ensinou tudo que sei”

“O pessoal do Partido achava que eu tinha que estudar. Mas eu tinha que sobreviver, trabalho desde os 5 anos; trabalhava com o meu pai. Como eu trabalhava direitinho, não faltava emprego. Trabalhava de dia e a noite ia para as reuniões. Às vezes tinha que voltar a pé pra casa por que não tinha mais condução.” Julio não pôde participar do movimento secundarista, tão forte naqueles anos 1950. Estudou apenas um ano no interior e mais três meses numa escola particular na capital. “Não estudei, a vida me ensinou tudo que sei.”

O PC do Brasil sempre teve forte base de trabalhadores. Homens e mulheres de elevado valor moral que compunham a base produtiva do país. Julio faz parte dela. Trabalhou como operário da Metalúrgica Paulista, tendo grande participação sindical, e atuou no distrital do bairro paulistano do Belém durante os anos 1950. Ali também tinha forte base de têxteis e vidreiros.

Além do Belém, os bairros do Tatuapé e Mooca tinham forte base comunista. As assembleias sindicais eram lotadas em grande medida por trabalhadores desses bairros. Julio dirigia o Distrital do Belém, enquanto Ângelo Arroyo dirigia o da Mooca e Pedro Pomar o do Tatuapé (ambos foram assassinados na Chacina da Lapa). O veterano comunista José Duarte também frequentava, desde sua juventude, as bases comunistas desses bairros.

Mesmo em tempos de perseguição, os comunistas tinham forte apelo popular. As características mais tradicionais do povo brasileiro sempre se refletiram nas bases do Partido. “Depois da reunião do Partido cada um ia para o seu lado. Na verdade eles iam para igrejas, centros espíritas, inclusive dirigentes, mas não podiam dizer por que o Partido era materialista (risos)”.

Crise no movimento comunista brasileiro

A maior cisão comunista foi em escala planetária depois das denúncias feitas por Nikita Krushov de erros e crimes cometidos por Stalin. Aproveitando a confusão instalada pelo dito “relatório secreto”, Krushov dirige uma guinada na política soviética que culmina com mudanças substanciais como, por exemplo, convivência pacífica com o capitalismo e o conceito de Partido Comunista de todo o povo, agora não mais partido do proletariado.

O fato causou furor nas fileiras partidárias comunistas do mundo inteiro. No Brasil, houve intensa discussão em reuniões e através dos periódicos comunistas, inclusive à revelia das direções partidárias. Históricos dirigentes e intelectuais abandonaram o Partido, sendo seguidos por considerável leva. Acompanhando as linhas internacionais o PCB publica a “Declaração Política”, de março de 1958.

O 5º Congresso do PC do Brasil (1960) discutiu à exaustão essa nova conjuntura dos comunistas. A Tribuna de Debates do Congresso, publicada no jornal Voz Operária, teve como artigo de abertura “Duas concepções, duas orientações políticas”, de Maurício Grabois. O autor denunciava a guinada dizendo que “a declaração embeleza o capitalismo”. Grande maioria dos artigos posteriores dialogava concordando ou discordando com o de Grabois. Enfim, o Congresso não seguiu, em grande medida, as orientações daquele grupo que tentava alinhar o PC do Brasil às aventuras de Krushov.

Diante dessa derrota parcial, Prestes e seu grupo encaminharam novos estatutos e resoluções ao Tribunal Superior Eleitoral. Mudaram o nome do Partido para Partido Comunista Brasileiro, alteraram o programa, retiraram referências ao marxismo-leninismo e internacionalismo proletário na ânsia de legalizar eleitoralmente o PC.

“As notícias do [20º] Congresso do Partido Soviético chegaram muito truncadas na base. O Prestes e um grupo estavam de acordo, mas o resto não estava. Eles não davam tantos detalhes ou documentos pra gente, não. Nisso se deu um grande racha e eu fiquei com o pessoal que não aceitava as idéias do Prestes. Tanto é que quando eles fizeram o registro de um partido novo [o Partido Comunista Brasileiro] eu não me filiei, não assinei.”

“Eu fazia parte da base [do bairro paulistano] da Vila Formosa e num domingo houve uma reunião em que me disseram que ou eu assinava ou eu estava expulso. Eu disse que não ia assinar e que não poderia ser expulso de um Partido que eu nunca tinha entrado. Aí eu fui ficando com o outro pessoal: Amazonas, Pomar, Luis Vergati, Ângelo Arroyo, Walter Martins (Pepe). Tinham outros, mas eu não lembro, por conta da repressão, não sou muito ligado a guardar nomes.”

Nesse mesmo período por volta de cem comunistas escreveram uma carta à direção onde diagnosticavam que “o Comitê Central alterou o nome do Partido, modificou profundamente os Estatutos e apresentou um novo programa, atribuições exclusivas do Congresso, exorbitando, assim, as suas funções.” Pediam que se convocasse um congresso extraordinário para avaliar tais decisões.

Julio foi um dos revolucionários que deu concordância àquela Carta. “Eu não me lembro muito bem desse episódio da Carta, mas o Luis Vergati antes de morrer comentou comigo que eu tinha sido um dos cem.”

A reorganização do PC do Brasil

O novo partido continuou com o processo de reformas no movimento comunista brasileiro. Os revolucionários reorganizaram o Partido Comunista do Brasil “numa reunião de dois dias lá no Ipiranga, eu estava lá”. “No primeiro dia eu cheguei atrasado por que estava trabalhando”, conta Julio.

Essa reunião, conhecida como Conferência Extraordinária de 1962, iniciou as bases da reorganização. Elegeu um Comitê Central de 15 camaradas, deliberou seu Manifesto-Programa – que volta à elaboração sobre o socialismo e o Brasil nas bases de antes da Declaração de Março de 1958.

“Na hora do almoço dessa reunião eu perguntei a alguns camaradas ‘vocês negam a história do Partido?’ Sem entender disseram que não negavam. E me perguntaram: ‘o que tem a ver negar a história do Partido com reorganizar o Partido?’ Eu respondi: ‘se nós não negamos a história do Partido, este é o mesmo Partido.”

A reunião, segundo, Julio fez um balanço crítico do movimento comunista internacional e colocou como uma prática danosa o culto a personalidade. “Eu fiz uma intervenção para que acabasse com a secretaria geral. Assim foi feito e nós criamos uma comissão executiva que tinha cinco membros.” A partir dessa reunião o PC do Brasil passou a ter uma comissão executiva, agora com o cargo de secretário político.

Afirma Julio que na Conferência de 1962 “nós escolhemos o Comitê Central, o estadual e o municipal de São Paulo também. Eu fiquei no comitê municipal, mas depois eu saí. E nós pudemos fazer um trabalho junto aos têxteis e metalúrgicos, que, em parte, ficaram conosco.”

Na primeira semana do golpe de 1º de abril, Julio foi levado “para o quartel do Exército do bairro da Penha junto com o ‘seu’ Valdemar Moreno, que era do PTB. Fizeram uma série de perguntas por quase duas horas, não torturaram. Colocaram uma gravação de um congresso em que eu falava. Estavam atrás de mim já há um tempo. Depois de dois dias nos mandaram embora.”

O Diário Oficial da União de fins de 1966, indiciou 38 integrantes do Partido, sendo um deles Julio Cabello: “Em virtude da periculosidade que representam para a sociedade e para a Segurança Nacional, este encarregado de IPM [Inquérito Policial Militar] é de parecer, salvo melhor juízo, que é de toda conveniência a decretação de prisão preventiva (...)”. Porém a repressão não conseguiu prendê-lo.

Julio tinha divergências com os rumos que o debate de luta armada tomou. Pediu afastamento do Partido, mas guardou amizades intensas como com Luis Vergati e Walter Martins, o Pepe. Mesmo afastado cumpriu uma tarefa importante. “Fui, a pedido do Vergati, até Goiás para reatar contato de um companheiro lá. E depois ainda fui reatar contatos em Mato Grosso, Ribeirão Preto, Triângulo Mineiro, etc.”

Hoje a vida clandestina não tem mais sentido e as lutas são armadas de argumentos. Julio, já há anos, está de volta à vida política regular. Ele contribui com as atividades do mandato da vereadora comunista de Guarulhos, Luiza Cordeiro: “Nunca parei de militar!”


Nenhum comentário:

Postar um comentário