quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
Alexandre Santini é o comparsa de hoje no conversa.com. Ele atuou na UJS e hoje integra a coordenação do coletivo de cultura do PCdoB. Mas suas principais credenciais não são essas. Dramaturgo e diretor de teatro, é um sujeito brilhante, criativo, cativante. Ele está desenvolvendo, junto aos companheiros do CUCA da UNE de todo o país, o projeto de um espetáculo teatral com o título provisório CUCA Conta o CPC da UNE. O título é uma citação e homenagem antropofágica ao ciclo de espetáculos musicais do Teatro de Arena de SP iniciado em 1965 com Arena Conta Zumbi, depois Arena Conta Tiradentes e que chegou ao auge com Arena Conta Bolívar, em 1969/70. Tratava-se de espetáculos musicais, altamente elaborados, que mesclavam a forma épica e a dramática, e representam uma linha de continuidade e avanço das propostas dramatúrgicas do CPC.
Deixemos a palavra com ele, que me disse, carinhosamente, que se sentiu como se fossemos ambos personagens de Rasga Coração. Quero dizer que aprendi muito com a entrevista e recordei dos tempos de teatro estudantil onde iniciei minha vida política.
Alexandre, como é a peça, como surgiu a ideia e quem a escreveu?
Entre 2008 e 2009 fui coordenador geral do CUCA da UNE e sempre persegui o objetivo de consolidar o CUCA como um espaço de produção e criação artística, que reunisse estudantes, artistas e fazedores culturais com o objetivo de pesquisar uma linguagem artística mais próxima das características e das necessidades da cultura do povo brasileiro. Ao encerrar minha gestão no final do ano passado, livre das responsabilidades da coordenação geral, pensei que a melhor contribuição a oferecer ao CUCA neste momento seria como artista, através do meu ofício teatral. Conversei com alguns parceiros do CUCA, que são colegas de teatro, propondo que fizéssemos uma pesquisa, uma releitura, um mergulho profundo numa das mais importantes experiências da vida cultural brasileira, com a qual o CUCA tem uma filiação histórica direta: o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Do interesse comum neste diálogo entre as experiências do CUCA e do CPC surge a proposta deste espetáculo teatral, intitulado CUCA conta CPC da UNE. E o método de trabalho é ousado: todo o processo de criação do espetáculo vem sendo desenvolvido em rede nacional, com ensaios presenciais de um núcleo gerador reunido no Rio de Janeiro, e um intenso trabalho virtual através de ferramentas da internet, reunindo artistas de pelo menos oito estados. Ou seja, fazendo também “ensaios virtuais” e construindo a dramaturgia a partir de um processo colaborativo nacional. Tem sido uma experiência muito interessante e enriquecedora, na forma e no conteúdo.
Parece que tem a forma de um auto. É isso mesmo?
Sim, os autos são uma forma espetacular existente desde a Idade Média, cujas características fundamentais estão presentes em diversas manifestações de teatro popular ao longo da história. Diversas formas espetaculares, desde as peças de Shakespeare até os desfiles de escolas de samba, se utilizam de estruturas cênicas e narrativas bastante próximas aos autos. Os autos são uma forma ao mesmo tempo épica e dramática de contar histórias, seja de um indivíduo, de um povo, de um mito, lançando mão de todos os recursos cênicos possíveis: versos, narrativas, música, imagens… O tema, ou enredo, é o que dá unidade a tudo isso. É uma forma de espetáculo com grande poder de comunicação e fácil compreensão. O próprio CPC lançou mão dessa forma de espetáculo, com o Auto dos Noventa e Nove Por Cento, escrito por vários autores, entre os quais Vianninha, Armando Costa, Carlos Estevam Martins, Cecil Thiré, e até o Marco Aurélio Garcia, hoje assessor internacional da Presidência da República, que na época era do núcleo de dramaturgos do CPC. Esta peça talvez tenha sido uma das experiências mais interessantes da dramaturgia do CPC, justamente porque sua estrutura possibilitava uma facilidade de comunicação imediata, sem necessidade de reducionismos, mensagem diretiva. O Auto dos Noventa e Nove Por Cento é um texto irônico, engraçado, que consegue ser crítico e didático sem perder o bom humor, é popular no melhor sentido do termo. Será muito bom se conseguirmos trazer esse clima para a encenação de CUCA conta CPC da UNE.
Como ela se inscreve no panorama teatral brasileiro contemporâneo?
A historiografia do teatro brasileiro não dá o devido valor e importância à experiência teatral do CPC, e há um forte cunho político e ideológico nesse aparente “esquecimento”. Há, entre os historiadores de teatro no Brasil, uma tendência a certa condescendência do tipo “ah, o CPC fazia um teatro de mensagem, generoso, mas panfletário, sem preocupações estéticas e formais”. E isso absolutamente não é verdade, há desconhecimento ou má-fé neste tipo de afirmação. Só para ter uma ideia, a primeira vez que as formulações de Bertolt Brecht sobre o teatro épico tiveram uma efetiva aplicação de maneira original no Brasil, foi justamente nos textos e encenações do CPC. Brecht falava dos efeitos de distanciamento, de crítica social, de utilização de formas e estruturas populares, de narrativa anti-ilusionista no teatro, e alguns desses pressupostos só chegaram a nossa cena teatral a partir do CPC, e influenciaram decisivamente os movimentos posteriores do teatro brasileiro, como as experiências dos grupos Arena, Opinião, Oficina etc.
Neste sentido, há nesse espetáculo sobre o CPC uma ambição de lançar luzes sobre o lugar e a dimensão desta experiência no panorama do teatro brasileiro, dando ao teatro desenvolvido pelo CPC seu devido valor e reconhecimento. E o CUCA, por sua origem e filiação direta a esta experiência, talvez seja o coletivo que atualmente reúna as melhores condições para uma empreitada desse tipo.
Quando estreia? Como se viabilizou a produção?
A ideia é estrear no final de março em Fortaleza (CE), na mostra artística da TEIA 2010 – Encontro Nacional dos Pontos de Cultura. Neste evento estarão presentes artistas e representantes de grupos culturais de todo o país, um público altamente qualificado e com quem temos o maior interesse em dialogar. Paralelo a isso, vamos formatar um projeto para captação de recursos, inscrevendo em editais, leis de incentivo e outros, para que o espetáculo possa se viabilizar e circular nacionalmente. A peça reunirá artistas de todo país, portanto o principal desafio, em termos de produção, será viabilizar o deslocamento e a circulação da equipe pelo Brasil afora. Mas até isso tem a ver com o espírito do CPC, com as caravanas da UNE Volante, e certamente o espetáculo irá se construindo e se aprimorando no transcorrer das apresentações.
Por outro lado, não estaremos reféns de certas exigências mercadológicas que oneram os orçamentos das produções de teatro comercial: salários “de mercado”, gastos exorbitantes com divulgação, assessoria de imprensa, aluguel de salas etc. Uma das principais inovações do CPC foi justamente em relação aos meios de produção: ao se aliar e obter o apoio do movimento estudantil e dos movimentos sociais, o CPC encontrou alternativas de suporte financeiro e logístico diferentes e criativas em relação ao teatro comercial da época, o que proporcionou mobilidade e agilidade na circulação de suas produções culturais. Marxistas que somos, acreditamos que a escolha dos meios de produção influenciará decisivamente a forma e o sentido do produto. Este é mais um dos legados do CPC que buscaremos recuperar para aprimorar e desenvolver, e, quem sabe, estaremos formulando também um novo modelo de produção teatral para o Brasil de hoje, um software livre para se fazer teatro, uma alternativa simples e eficiente aos rigorosos e inacessíveis padrões éticos, estéticos e econômicos do mercado cultural.
Dramaturgia e música: tudo a ver no Brasil?
Tudo a ver. A musicalidade do povo brasileiro é um fator definitivo da nossa cultura e identidade nacional, e no caso do teatro não é diferente. A presença da música na cena teatral brasileira é riquíssima. Desde o século XIX a partir das revistas e operetas de Artur Azevedo e França Junior, os espetáculos musicais ocupam lugar de destaque na nossa dramaturgia. Compositores como Chiquinha Gonzaga foram lançados e se tornaram populares através do teatro. O teatro de revista das duas primeiras décadas do século XX deu lastro a uma importante tradição de teatro musical brasileiro, que influenciou, por exemplo, o formato dos programas que popularizaram o rádio enquanto veículo de comunicação de massa no Brasil, bem como o nascimento da indústria cinematográfica, com as Chanchadas da Atlântida. Nos anos 60, com o resgate do samba dos morros cariocas e a crescente politização dos meios artísticos em um período de endurecimento político e polarização ideológica, retomou-se a criação de espetáculos musicais com características brasileiras, do qual o exemplo mais emblemático é o Show Opinião, de 1965, considerado por muitos a primeira “resposta” do setor cultural ao golpe militar ocorrido no ano anterior. A partir do Opinião inicia-se um novo ciclo para espetáculos musicais no Brasil, que conseguiram aliar qualidade estética com apelo popular e obtiveram grande sucesso junto ao público e à crítica especializada.
No entanto, a partir dos anos 1980, os espetáculos musicais vão se distanciando desta tradição e o modelo que passa a imperar é uma transposição do formato dos musicais da Broadway, alguns com boa realização cênica, outros arremedos grosseiros, mas que padecem igualmente de certo acanhamento e visível falta de originalidade em relação ao produzido originalmente na metrópole. Mas há no teatro brasileiro uma vocação irresistível para o espetáculo musical, que está longe de ser aproveitada como deveria em nosso panorama teatral.
Você recupera duas tradições valiosas: a do Teatro de Arena e a do CPC. Fale um pouco sobre isso.
O Teatro de Arena e o CPC são experiências irmãs, que representam um divisor de águas na história do teatro brasileiro. Ambas têm a mesma origem, que foi a criação em meados da década de 1950 do Teatro Paulista do Estudante (TPE), por um grupo de secundaristas ligados a UPES (e ao Partido Comunista) que reunia os adolescentes Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri e Vera Gertel. Posteriormente, este grupo se associa ao diretor José Renato que havia fundado alguns anos antes um Teatro de Arena na Rua Teodoro Bayma, em São Paulo. A este grupo se junta Augusto Boal, que em 1958 assume a direção do grupo e decide encenar uma peça escrita por um de seus jovens atores, Gianfrancesco Guarnieri. Eles não usam Black Tie lança as bases para uma nova linguagem teatral no Brasil, um teatro moderno de características nacionais e populares. Posteriormente, Vianninha se afasta do Teatro de Arena e segue para o Rio de Janeiro, onde toma contato com o meio artístico e universitário efervescente da época, e este encontro culmina na criação do CPC, que teve em Vianninha um de seus principais expoentes e formuladores. Nunca é demais ressaltar na trajetória destes artistas o fato de que eram muitos deles quadros destacados do Partido Comunista, e suas formulações artísticas e teóricas sofreram influência desta ligação, assim como influenciaram fortemente a ação e a inserção do partido na vida cultural brasileira neste período histórico.
Um dos meus gratos amigos foi Gianfrancesco Guarnieri, a quem muito admiro (acho sua obra indevidamente avaliada todavia). Hoje me restou a grata amizade de Vânya Sant’Anna, sua companheira. O que ele representa a seu modo de ver?
O reconhecimento da contribuição imensa e genial de Gianfrancesco Guarnieri para a história da dramaturgia brasileira ainda está, infelizmente, como “Um Grito Parado no Ar”, expressão que dá nome a uma de suas melhores peças.
Eles não usam Black Tie foi a primeira peça teatral brasileira que colocou como protagonista um trabalhador, que retratou a vida da classe operária que se consolidava no país, que tratou de um tema político como a greve e que trouxe as questões sociais para o centro do drama. A obra de Guarnieri abre um caminho em nossa cena teatral que influencia toda uma geração de dramaturgos, desde Dias Gomes e Janete Clair, até os autores de telenovelas mais interessantes de hoje, como Aguinaldo Silva e Gilberto Braga. Além de tudo, era um excelente ator e um homem que foi, durante toda a sua vida, extremamente coerente e comprometido com os ideais e valores que inspiraram sua trajetória artística.
Velho e novo, Teatro de Arena – CPC, agora CUCA. O auto como forma teatral e a dramaturgia moderna. Uma das coisas que me marcaram na juventude foi Rasga Coração, do Vianninha, e lá tem uma passagem exatamente sobre o valor do velho e do novo, o conflito, mas a interação indeclinável entre ambos. Foi num momento mágico para o Brasil, final dos anos 50 e início dos 60, o país “bombava”. Hoje, em outro contexto e condições, o Brasil também está diante de novas potencialidades.
Isso se reflete na sua geração, na sua obra como artista?
Não é por acaso que, justamente neste momento que o Brasil está vivendo, estamos nos lançando nesta experiência de dialogar com a produção artística e cultural do período do CPC. Naquele momento havia, como creio que começa a surgir hoje, um sentimento de que o Brasil estava diante de uma possibilidade de desenvolvimento pleno, de avanço, de um salto histórico, como o que estamos vivendo agora. Evidente que havia, assim como há hoje, forças contrárias e reacionárias, toda uma propaganda ideológica conservadora, mas naquele momento setores importantes na vida cultural e na luta de ideias se posicionaram ao lado das forças progressistas e transformadoras. E creio que deste diálogo entre o velho e o novo, entre a produção artística deste período histórico e a que temos condição de produzir neste momento, irão brotar novas e interessantes possibilidades para a arte e a cultura de nosso tempo.
Qual foi sua trajetória até a dramaturgia?
Desde criança tive uma ligação forte com o teatro. Minha família nunca fez distinção entre teatro infantil e teatro adulto nos meus programas de fim de semana, portanto eu via de tudo. E lembro de assistir aos 10 anos uma montagem do Jardim das Cerejeiras, de Tchekov, que adorei e foi quando pela primeira vez ouvi falar da Revolução Russa. No Colégio Pedro II, onde fiz o ensino médio, participei de um grupo amador orientado por um de nossos professores que fez questão de nos apresentar aos textos clássicos da dramaturgia universal. Nas Semanas Culturais, organizadas pelo grêmio estudantil do qual fui presidente, encenamos peças de alto padrão como Liberdade Liberdade de Flávio Rangel e Millôr Fernandes e Terror e Miséria no III Reich, de Brecht. Parece inacreditável uma molecada fazendo essas peças na escola, mas a gente fazia e era muito bom. Passei no vestibular para História e Artes Cênicas, mas o desejo do teatro falou mais alto. Abandonei o curso de História e me formei em Direção Teatral e Teoria do Teatro pela UNIRIO. Em 2001, passei um ano na Cidade do México trabalhando com um coletivo de artistas latino-americanos, que reunia músicos, bailarinos, atores e artistas plásticos. Conseguimos um financiamento da Fundação Ford para um projeto de intervenções urbanas sobre a questão dos desaparecidos políticos nas ditaduras militares da América Latina. Nestas ações eu fazia uma espécie de narrador, mestre de cerimônias, e acabei descobrindo o teatro de rua como possibilidade de uma atuação ao mesmo tempo cultural e política. Quanto voltei ao Brasil, passei a trabalhar com o Grupo Tá Na Rua, do Rio, dirigido pelo teatrólogo Amir Haddad, onde desde então atuo como ator, dramaturgo e coordenador de projetos de uma ONG criada e mantida pelo grupo, o Instituto Tá Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania. Em paralelo, sempre mantive uma militância social e política no movimento estudantil e no movimento cultural, que considero também como elementos fundamentais na minha trajetória e formação pessoal.
Em meu blog, tratei diversas vezes do tema do pensamento de Gramsci. Parece que você também vê aí questões seminais ao pensamento atual sobre os desafios brasileiros. Confere? Um de meus entrevistados (Julio Vellozo) chegou mesmo a sugerir um seminário sobre tal pensamento, no âmbito do partido e entorno. Você considera Gramsci atual?
Gramsci é um dos autores marxistas de maior importância para nós que atuamos no campo da cultura e da luta de ideias. É também fundamental para pensarmos a questão da identidade nacional e da formação do povo brasileiro, o papel destes elementos culturais como parte da luta política. Gramsci compreendia a política como uma dimensão da cultura, e não o contrário. O Brasil talvez tenha sido um dos países que mais absorveram as formulações de Gramsci, especialmente na obra de intelectuais como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho (que por sinal tinham fortes ligações com a geração do CPC). Creio que nosso partido, ao formular sobre um novo projeto nacional de desenvolvimento e afirmar a especificidade do processo de formação do povo brasileiro na construção do socialismo no país, compreendendo o processo revolucionário como uma duradoura disputa de hegemonia no interior da sociedade, está dialogando com a contribuição teórica e política de Gramsci. Gramsci é atual, está na ordem do dia, e creio que seria muito importante que o PCdoB tomasse a iniciativa de estudar, debater e difundir sua obra e seu pensamento.
Entrevista concedida a Walter Sorrentino
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